Como psiquiatra em Fortaleza, uma das perguntas com as quais mais me deparo na prática psiquiátrica diária é o questionamento se os medicamentos na psiquiatria (psicofármacos) trazem determinado grau de dependência. Ora, há que se fazer várias considerações para clarificar a questão, pois uma resposta simples pode levar a equívocos, como em quase tudo que concerne à saúde mental.
A primeira situação a trazer, antes de qualquer coisa, é o conceito de dependência: trata-se de padrão de uso prejudicial de substâncias psicoativas, com diversas características associadas: tolerância, ou seja aumento progressivo da quantidade utilizada, com fins de manutenção da obtenção dos efeitos psicoativos esperados da droga, sensações estas que deixam com o tempo de incidir nas doses mais baixas; presença de síndrome de abstinência, a incidência sintomas e sinais físicos diversos, tais como irritabilidade, ansiedade, dificuldade para se concentrar, tremores e sudorese; padrão de uso exagerado, maior que o pretendido a priori; consumo da substância a despeito das diversas consequências perniciosas na vida, etc. Essas são apenas algumas características citadas para bem ilustrar o que conceitualmente é a dependência química em si.
A consideração seguinte é que há, sim, potencial de dependência por parte de algumas medicações, a partir do que se conceituou há pouco. A classe de medicação mais conhecida por esse risco é a dos benzodiazepínicos, as famosas prescrições de receituário azul ou “tarja preta”.
São fármacos da maior importância, utilíssimos, com capacidade de diminuir a ansiedade e ajudar na conciliação do sono, mas detém esse indubitável risco quando utilizados de forma prolongada, sem critérios e indicações precisas, como por exemplo no autotratamento.
Não é por acaso que necessitam de prescrição em receituário específico, com maior controle por parte de órgãos reguladores. No que tange aos demais fármacos não há risco de “vício”, ou mais amiúde: antidepressivos, antipsicóticos, estabilizadores do humor, entre outras classes, não causam efetiva dependência.
“Então Doutor, por que não consigo retirar minha medicação? Sinto tanta coisa quando tiro…“. A resposta é simples, mas não tão singela que não possa comportar duas possibilidades de esclarecimento. O primeiro caminho a ser percorrido trata-se de citar e conceituar sobre a síndrome de retirada. Tal condição caracteriza-se como a incidência de sintomas ocorridos após retirada abrupta de uma medicação, achados estes que podem variar amplamente (insônia, irritabilidade, ansiedade, etc). Ocorre o surgimento desses fenômenos desagradáveis devido à manipulação da bioquímica cerebral quando tal órgão está exposto ao uso de psicofármacos. Em outras palavras: para uma medicação atuar com eficácia ela deve modular uma série de substâncias cerebrais, via de regra denominadas neurotransmissores, promovendo alterações funcionais do sistema nervoso central. É de se esperar que essa nova conformação neurobioquímica já esteja equilibrada no cérebro com o tratamento de longo prazo, o que levaria a dificuldade na cessação imediata do fármaco.
Dessa forma, substâncias utilizadas por muito tempo devem apenas ser descontinuadas de forma progressiva e mediante recomendação médica, de modo que haja tempo para que a maquinaria neuronal possa encontrar um novo estado de equilíbrio sem a medicação.
Pode o paciente, ainda insatisfeito, retrucar: “Ora Doutor, mas isso não é síndrome de abstinência, componente da dependência?“. Fundamentalmente não. Primeiro que na síndrome de abstinência há verdadeira e imperativa urgência para o consumo da droga de abuso, pois o organismo sente inequivocamente falta dela, enquanto que na síndrome de retirada a urgência é mais como um grito de alerta do organismo, que pede tempo para a adequação ao novo estado de equilíbrio. Situação semelhante acontece com alguns tipos de medicamentos, normalmente não relacionados ao estigma do “vício”, tal como a clonidina, um anti hipertensivo de ação no sistema nervoso central, que se retirado de forma brusca pode levar a um quadro de aumento grave da pressão arterial, chamado hipertensão de rebote.
Segundo argumento que se lança é que junto com a síndrome de abstinência há todo um cortejo de fenômenos relacionados à legítima dependência, a saber: tolerância para os efeitos psicoativos; uso compulsivo em grandes quantidades; dificuldade de controlar o uso apesar dos prejuízos causados; limitação de outras atividades pelo uso da substância, etc. Ninguém escuta falar por aí sobre pessoas que passaram a utilizar 30 comprimidos de fluoxetina para “ficar alto”, com dificuldade de cortar o consumo e que limitaram a vida social/recreativa/laboral para ficar ingerindo, tresloucadamente, uma pílula após a outra.
Pode-se ainda citar, sinteticamente, um outro argumento mais técnico para diferenciar síndrome de retirada de síndrome de abstinência. Esta acontece por influência direta das drogas de abuso em um sistema chamado sistema de recompensa, que envolve uma substância chamada dopamina, com atuação em estruturas de nomes complexos (p.ex.: área tegmental ventral, núcleo accumbens). Já aquela síndrome opera por outros mecanismos diversos, que não cabem ao escopo atual esmiuçar.
Para responder de forma inconteste à pergunta inicialmente trazida (“Então Doutor, por que não consigo retirar minha medicação?“), traz-se por último a explanação, quiçá, de maior relevância. O fato é que muitos transtornos mentais são crônicos, recorrentes e, portanto, necessitam de tratamento de longo prazo. Assim, retirada a medicação pode-se apresentar reagudização dos sintomas da doença para o qual o tratamento foi instituído. Essa reiteração sintomática é fator complexo e demandaria um texto específico para melhor delineamento dessa questão. Por hora, limito-me a utilizar um paradigma também assentado na hipertensão arterial sistêmica, seguindo a linha de raciocínio anteriormente explicitada.
Pergunto: o que acontece com um paciente hipertenso, portador de uma doença também crônica, assim como aquelas psiquiátricas, se parar o seu medicamento? É certo que irá ter um pico hipertensivo, um descontrole da condição de base para o qual estava sendo tratado. O mesmo exemplo pode ser extraído de um paciente diabético que cessa o seu fármaco antidiabético. E vou além, com um exemplo tão habitual quanto esquecido: o óculos que você, caro paciente, utiliza faz parte do mesmo rol de exemplos. O déficit de acuidade visual é condição crônica, apenas curável por cirurgia e de controle definitivo limitado a alguns casos, e que necessita de uma lente corretiva para melhoria da visão. Retirada a lente, retorna o problema. Resguardada as devidas proporções, tratam-se de raciocínios semelhantes.
Por fim, fica a seguinte reflexão. O que é difícil, na verdade, é aceitar e assumir que se padece de uma doença de longo prazo, potencialmente grave quando não devidamente cuidada, e que muitas vezes pode necessitar de um tratamento demasiado prolongado. Essa dificuldade torna-se ainda mais pungente quando se considera que muitos transtornos psiquiátricos acometem pessoas na adolescência e início da fase adulta.
Mais fácil que aceitar um diagnóstico, e lidar com as consequências negativas que dele emanam (estigma, exames complementares, medicamentos, custos, etc), é culpabilizar os fármacos que nenhum potencial de dependência trazem. A humanidade fez isso durante toda a sua história (é um fenômeno psicológico habitual, adaptativo até): desresponsabiliza-se por suas dificuldades e problemas, projetando em outrem, ou em algo, a explicação hipotética para estas limitações.
E você, também acha que está dependente de seu óculos?
O Dr. Igor Emanuel é um psiquiatra em Fortaleza que investe continuadamente em conhecimento, sendo referência em sua área por prestar serviços de excelência. Conheça de forma mais aprofundada o trabalho do Dr. Igor conhecendo o seu currículo e acompanhando o seu Instagram e Facebook. Caso queira marcar uma consulta com psiquiatra em Fortaleza, você está no local correto!
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Dr. Igor Emanuel – Psiquiatra em Fortaleza